I
Vesti com a madrugada
esta camisa de lamúrios
uma lua em fogo fátuo
enamorada de estrelas
Adornei a felicidade com álcool
e injetei nos olhos sonâmbulos das noites mortas
a força adolescente dos meus trinta anos
de memórias e planetas
Levo entre dentes
um blues vagante e solitário
e um choro bem chorado
no bolso do meu jeans
Quando eu atravessar a porta
a felicidade será meu território conquistado
minha hipoteca resgatada com cerveja
quando eu atravessar a porta
Até lá
sou apenas a sombra
mortal e cheia de gazes
de um demônio que me habita
II
Em silêncio e sombra
vem o terror das cavalarias noturnas
anunciar o tempo que bate à minha porta
30 anos!
e os sonhos são um barco sem futuro
construindo nuvens nas minhas veias
Nasci com sonhos de titãs
num tempo de carnavais anêmicos
e foliões desconhecidos do sol
nasci num mundo de roedores de cimento
catadores das migalhas que caem
no banquete dos poderosos
Passou o tempo das grandes revoluções
do poeta capaz de espetar estrelas
do malandro romântico entre navalhas e pandeiros
abatido nas coxas
da mulher em carne viva
Passou o tempo do homem irmão da terra
amante das estações e das miudezas
perdido entre o canto do galo
e a embriaguês do seu canto de guerra
III
Que vale a minha camisa
de olhos vesgos pregados na nuca?
o passado nunca foi um eldourado
e o futuro precisa de músculos e tendões
para amanhecer violento com o estrondo de mil carnavais
(O tempo é casa flutuante ancorada na memória
aconchega o éden que perdi nalgum lugar
na casa dos avós dos meus avós
ou perdi num futuro que
com um punhado de homens que ainda sabem sonhar
construiremos sobre as ruinas da nasdaq)
As mãos da história
não tem os meus miolos
bordados nas asas de um corvo
sobra no peito o sangue
e a fúria dos elementos
com eles
pretendi construir meu canto
IV
Talvez não seja um canto
o que construo com palavras e sonhos acima do kilomanjaro
talvez um cristo endiabrado
me ofereceu uns copos
e numa orgia acima das nuvens
esporrei na cara de um anjo
Talvez esteja sobrando
no computador de um deus
palavras e códigos binários
com 0 e 1 constrói a cachaça
que tomo cada sexta-feira
e os versos que gozei em meu quarto
até cair
engasgado com as palavras